Orelha do "Leoa ou Gazela" - por Heloísa Galves

16:11
Não há como falar dos escritos de Flávia sem falar de Flávia, sua trajetória e a incrível capacidade de entrar impunemente em nosso cerne através de suas poesias, surtos de alegria e pesar que acabam por serem meus e de tantas pessoas que percebem nela um “súcubo em forma de buraco negro”.

Flávia nos suga para dentro dela e duvido que não saiba disso.

A conheço há poucos anos, o suficiente para apresentá-la ao leitor como a “Maga dos poemas sensuais, carnais, santos e profanos”, repletos daquilo que a mitologia nos conta, porém ainda mais repleto da mitologia que brota lasciva em cada palavra que escreve.

Existe dentro dela um reino de mil possibilidades e é esse reino de sátiros, demônios, vampiros, minotauros, orixás e outras criaturas inventadas, que nos impregna os sentidos, a libido e nos garante a vontade ir além das páginas, onde os poemas vociferam outras esferas.

A visão se expande em ilustrações de Luiz Royo:

Há símbolos mágicos
pintados em meu corpo
com tinta azul sulferina.

A audição se deslumbra ao som das bacantes:

Com você quero
preâmbulos.

Seus dedos de guitarra
so lan do
um violão clássico.

O paladar se delicia com Ambrósia e o vinho de Dionísio:

Gosto araucário
de terra,
raiz tuberosa.

O olfato desliza entre aromas de corpos em chamas e essências próprias de rituais de sangue:

Já sumiu do meu corpo
o sudário de tua pele
e teu cheiro

O tato aperta o livro com força para dele extrair mil matizes sensoriais de peles, pernas, bocas...Assim o néctar chega engendrando todas as possibilidades, do amor, do sexo e sobretudo da dor sagrada que ele implora para sentir:

Meu passado
ora me chicoteia as costas
e sangro,
lanhada e roxa

É hora de sentarmos sem pressa na perna de quem desejarmos, tomar o livro às mãos e começar essa viagem...

Heloisa Galves
Inverno de 2009


Prefácio do livro - por Betty Vidigal

10:22
Flávia Perez tem mesmo leveza de gazela, olhar de gazela. Mas os poemas não são ariscos: esta gazela não é vítima, nem foge do seu perseguidor. E sabe inverter os papéis, caçando em vez de ser caçada.

Cada poema de Flávia mostra que ela ouviu os sons vindos de uma voz íntima e os transcreveu. É isso o que a inspiração produz. Ao contrário dos versos ‘feitos’, fabricados com muito esforço, os de Flávia mostram ter nascido naturalmente, já no ritmo certo, com as tônicas acentuando a batida, surpreendendo.

Nasceram com métrica precisa, sem que ela tivesse precisado ficar dedilhando sílabas, cortando algumas, acrescentando outras.

Poesia é uma arte em que ‘transpiração’ não tem valor nenhum. O bom poema é resultado de inspiração, e a crença de que qualquer pessoa que conheça as regras da versificação pode, caso se dedique o suficiente, produzir versos eternos é um equívoco resultante da forma atual de se ensinar poesia nas escolas.

Flávia descobriu a sonoridade e o poder das palavras e brinca com elas em poemas de que o leitor – e principalmente a leitora – pode se apropriar. Assim devem ser os poetas: entidades que dão voz ao universal produzindo música em palavras.

O uso sábio da rima faz de Flávia uma raridade neste mundo de jovens que se recusam a rimar, engano de quem não foi tomado pela alma da palavra, com seus ecos e suas possibilidades.

Um verdadeiro poeta, assombrado pelo poema, usa os sons com virtuosismo, dando a eles tons velados e múltiplo significado. Assim são os poemas deste livro, que trazem não apenas as chamadas “rimas ricas”, mas também sentidos ricos, que sempre deixam algo por ser desvendado.

Esgarça
A gaze branca que me encobre.

Na meia-taça,
Derrama qualquer bebida,
Mesmo a menos nobre.

Ou: “Mas a paixão perdeu o viço / e depois disso/”, como diz Flávia em “Meu D. Quixote”, ousando na rima nunca fácil, sempre original.

Mesmo as rimas entre verbos são inusitadas. Em vez de rimar verbos da mesma conjugação, Flávia escapa dessa armadilha com segurança, buscando a rima onde parece que ela poderia não estar, como aqui:

Mas meu homem
põe a mão em concha
quando transbordo.

[...]

segue meus passos,
desde a hora em que acordo
até agora,
quando mordo.

A rima entre o presente de transbordar/acordar e o presente de morder vem com naturalidade, sem forçar a atenção do leitor para essas pinceladas sonoras.

Também rimas toantes marcam a poesia de Flávia, revelando o domínio no uso das vogais. De “Destecida”, seleciono alguns versos para formar a frase que evidencia esse recurso poético: “fios do meu cabelo” “repartindo ao meio” “meu mundo e o” “mundo de onde você veio”.

Além da rima, a aliteração sabiamente dosada aparece neste livro, sem recorrer às palavras mais óbvias. É o jogo que se revela no poema “Tormento”, com curare, curativo, curetagem, curandeiro.

Flávia dirige-se a um Homem mítico e universal. A gazela ousa arguir quem pretende caçá-la e termina por também devorar o objeto da paixão.

Pode parecer que o assunto Homem deveria esgotar-se em poucos versos. Mas Flávia, com olhar amoroso, sempre encontra algo mais a dizer sobre a outra metade da espécie humana. E, talvez por isso, precisa ser Leoa ao deixar de ser Gazela.

Betty Vidigal

Especiaria

17:52
À espera submarina
do peixe - dos - terremotos,
ela sonha seus versos toscos:

alegorias escondidas
em margaridas sulferinas
e antigos signos mortos.

Lá no fundo do barco,
nos porões do que foi,
estão seus olhos de ontem.

Esses velhos marinheiros
repetem o fog sob os cílios.

Incrustrados,
não reconhecem cenário,
pátria, ilha ou parada,
nem quando vêem os filhos.

Com lentidão de sereia,
a mulher que desveste o espelho
à boca soma acalantos.

E guarda que nela se afoguem
outros lábios vermelhos,
inchados
de tanto prazer e pranto.


(poema vencedor do primeiro lugar no
 Prêmio Cidadão de Poesia de 2009)

Ukma canta meu poema AUREOLADA

17:38
Aureolada


Eu tão anjo tenho andado,
que em mim nasceram asas.

O que me perde pro céu
é esse meu grande rabo
endemoniado
e minhas coxas grossas.